sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Primeiro ato: A Bailarina

Celular toca aquela musiquinha característica, indicando que são 10 da manhã.
'Pf, despertador pra quê? Nem dormi ainda', pensa dando aquele tapa no celular pra fazê-lo se calar. 
Não quer se levantar. Não tem nem muitos motivos pra isso, na verdade. O que faria se, por ventura, deixasse a cama à essa hora da manhã? É... Nada. 'Melhor fazer nada aqui mesmo'.
Há 4 horas atrás, sentiu sede e não quis sair da cama nem mesmo pra buscar um copo d'água. Sempre pensava na desculpa das escadas. Tinha de descê-las e, isso, quando estamos falando de madrugada fria, esta fora de cogitação.
A rotina segue redonda. Irmãzinha levanta cedo. 'Criança é foda, potz, tem pique pra tudo'. O irmão também. 'Pentelho'. Escola, escola, escola.
Escola... 'Que saudade do Médio, puta que pariu'. Pensa na época em que tinha todos os amigos por perto, todos os dias, sempre que quisesse. Até mesmo aquele carinha que dava uma 'balançada nas estruturas', como ela mesma gostava de falar.
Toma seu banho pra poder, logo, ir trabalhar. Os 18 anos já não batem mais à porta, já entraram e tomaram conta da sua realidade. Tanto tomaram, que hoje tem 19. 
É uma mulher. Faz sua própria maquiagem, CNH na bolsa, preservativos (que, quando os olha, sempre pensa a mesma coisa). Compra suas próprias roupas, tênis e sapatos.
Sapatos... Engraçado.
Sentada na cama, enquanto faz aquele pequeno esforço pra colocar o seu Converse, se lembra dos dias naquele lugar onde os tênis e sapatos eram substituídos por sapatilhas. O cabelo, hoje sempre solto, vivia preso pra não atrapalhar a visão nos saltos, rodopios e movimentos que o ballet exige. Os pés, que hoje só fazem andar, deslizavam por aquele chão de madeira-espelho. 'Posso me ver aqui, nesse chão... Man..'.
Prefere não falar sobre isso. Não gosta de compartilhar dessas memórias que são tão suas. Memórias que foram vividas com tanta intensidade que prefere mantê-las guardadas pra si. 'Quem sabe um dia eu te conte?', disse ela pra já-não-sabe-quantos-amigos.
Não acredita nas pessoas. Acredita nos danos que elas podem causar. Sabe bem disso. 
Conhece essa história que nunca tem um final feliz pra ambos os lados. Sempre só existe um beneficiado. Não é desconfiança, é prevenção. Auto-preservação. Até mesmo porque 'não se envolver' nunca foi crime, certo? 
Nas noitadas com as amigas, começou a perceber que pensava diferente. 'Lésbica não, peraê. Só não curto sair trocando fluídos com qualquer um'. Enquanto as outras faziam as contas de quantos já tinham ido e vindo. Se lembra bem dos dias pós-festa: sempre a sóbria, sempre a lúcida, sempre a sem-arrependimentos, sempre a sem-frustrações, sempre a mesma. Sempre e, simplesmente, ela.
Por tantas vezes riu das lamentações das amigas. Ou por ser um cara que 'não mandou muito bem', ou só por fulana ter tido expectativas demais por alguém que nem valia tanto a pena assim.
Mas teve seus momentos. 'Não sou uma santa também, né? Por favor'. Teve seu namorado com o qual teve suas experiências, fez descobertas de si mesma e encontrou a definição do 'pode e não pode', 'gosto e não gosto'. Afinal, todo mundo vive. 'Porque eu não? HAHA'.
Sempre com seus fones na companhia, ela vai. Pra onde for. A música e ela não se separam. Involuntariamente, tem diversos vislumbres de um palco. Logo afasta da cabeça.
'Não julgue as pessoas pelo que você viveu. Ninguém é obrigado a ser taxado dentro do seu estereótipo e muito menos obrigado a fazer parte desse seu pré-julgamento. Não me compare as outras pessoas'. Foi o que ela, um dia, escutou.
Mesmo odiando ser contrariada, ela viu alguma coisa de valor em alguém que, normalmente, não chegaria nem perto. Como várias vezes já usou, resume na expressão: 'pessoas como você...'. 
Pagou. Sentiu o peso das suas palavras.
Se arrependeu. Em silêncio, claro. 'E o ego fica onde?'.
Enxergou que ainda pode haver esperança nas pessoas. Que ainda existe a verdade, mesmo que a mesma esteja escondida em algum lugar que ela, talvez, nunca encontre.
Pediu desculpas. Porque passou a se importar.
Sentiu saudades. Porque fez uma marca que ela, mesmo que tente, não pode mais apagar.
Olhou nos olhos. Porque, sem explicação, perdeu a vontade de desviar o olhar. Não tem mais a intenção de fugir.
Pediu. Porque achou que os seus olhos não eram suficientes pra dizer o que queria.