sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Pós.

Abriu os olhos.
Na verdade, não o fez.
O primeiro reflexo matinal sempre é procurar embaixo do travesseiro pelo celular no intuito de desativar o som irritante do despertador.
Ficou até sabe-se lá que horas conversando com algum fulano sobre um assunto aleatório. Virou rotina. Pelo menos, nas últimas vezes, tem sido o mesmo fulano.
Levantar nunca é fácil. Seja da cama ou de uma queda. Pra ela, dá na mesma. Se acostumou ao desapego, mesmo que de forma fictícia. A verdade é que não existe pessoa no mundo mais apegada que ela. Sempre foi assim: apegada ao primeiro brinquedo, às pelúcias, à sua cama, às amiga, ao assento próximo da janela, aos relacionamentos. Até copos de cerveja ela não dividia.
Esse é meu. Sagrado, 'ce' sabe.
Era assim na vida também.
Banho para o sono. Secador para os cabelos. Maquiagem para os outros. Trabalhar para si.
E foi. Saiu.
Ônibus. Metrô. Pessoas. Mais pessoas. Ocupadas em suas rotinas e dominadas por suas expressões sonolentas ou até mesmo presas em discussões virtuais que sempre levam a lugar nenhum. Sabe disso pois, como todo ser humano, bisbilhota as telas alheias.
Hoje, graças a Deus, é sexta.
No trabalho, sempre o mesmo: humanos vazios que falam de coisas vazias. Pessoas essas que é obrigada a conviver. Pior, é obrigada a sorrir, a dar atenção. Afinal, o ambiente corporativo não permite mal humor. Não, senhor.
"Escritórios são como o Coliseu: sobrevivência do mais forte", seu pai dizia. Desde que saiu de casa, tem vivido esse quote. Pelo menos achava que sim.
Agora livre, ligou pras companheiras de infância afim de acertar os detalhes da noite. Sabia, em seu íntimo, que escolhera viver em um mundo sem começo ou fim, logo, suas noites não podiam ser diferentes disso.
Casa antes, claro.
E a produção?
Mulher que se preze não sai de casa no 'intuito de' mas sim com uma 'perspectiva de'. Entende? Não está aqui pra saber se vai ou não, se pode ser ou não, está aqui por estar.Porque quer. Não por uma consequência ou fato obtuso sem importância.
O banho renova as forças. Sempre amou água, em todas as suas infinitas variações.
Diante do espelho, enquanto penteia os cabelos, repete mil e uma vezes que é dona de si, mesmo já tendo absorvido o mantra anos atrás quando ainda era menina. Mesmo sabendo que, por algum segundo ínfimo, pode perder o tal 'controle' e entregar-se de alguma forma desconhecida.
Dizem que o amanhã a Deus pertence, não é? Pois então. Hoje não. Ele pertence a mim.
Vestido preto pouco acima dos joelhos; tênis branco Vans baixo; cabelos soltos; batom roxo; um corretor aqui, outro ali e partiu. Foi-se.
Encontrou suas companhias no local de sempre e foi-se, mais uma vez. Essa acaba de ser a terceira partida de hoje.
Luzes, álcool, música, humanos e humanas. Álcool.
Palavras ao pé do ouvido. Uma negativa. Mais palavras. Mais negativas. Quanto aos pedidos? Negados, claro.
Retirou-se em algum momento para poder visitar o restroom quando fez a besteira de olhar o celular.
E era o fulano:
'Espero que esteja bem. Resolvi, finalmente, sair. Esses dias têm sido cheios e eu peço desculpas. De verdade. Não queria preocupa-la e, por isso, meio que me ausentei. Se eu encontra-la por aí, espero poder tornar a sua noite um porcento mais feliz. Afinal, o que eu mais quero é ser, com sorte, cinquenta porcento de quem você é'.
Desabou.
Por que agora? Por que não antes? Por que?
As pessoas têm o péssimo - ou excelente - hábito de fazer coisas perfeitas em momentos inoportunos. Veja o Messias: salvou a todos e, quando a humanidade descobriu que o cara era acima da média, o mesmo já estava morto. Temos a péssima mania de agir tardiamente. Afinal, para nós, remediar é melhor que prevenir.
Nem em sonho.
A essa altura, já não era mais dona de si.
Lembra do tal controle? Então. Não sei onde foi parar.
Luz se mistura com rosto, que se mistura com cores que, por sua vez se mistura com fumaça.
O tal som a desperta.
Olha para o lado e confere que está sozinha.
O primeiro reflexo matinal sempre é procurar embaixo do travesseiro pelo celular no intuito de desativar o som irritante do despertador.